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Euclides da Cunha 1866 - 1909

''Venci por mim só, sem reclames, sem patronos, sem a rua do Ouvidor e sem rodas. Não invejo, porém,

os que se vão buscando mar em fora, de outras terras, a esplêndida visão...

Fazem-me mal as multidões ruidosas, e eu procuro, nesta hora,

cidades que se ocultam majestosas na tristeza solene do sertão." - Euclides da Cunha (1866 - 1909)

À memória de Euclides (José Marcio Castro Alves)


Rio, 15 de agosto de 1907. Domício da Gama.

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Rio, 15 de agosto de 1907
Domício da Gama
Somente hoje posso responder à tua prezadíssima carta, cheia do misterioso encanto que as distâncias dão às palavras carinhosas dos amigos. Andei e ando muito doente de mapite aguda, porque certo há um micróbio sinistro emparceirado às traças vingadoras das velhas cartas geográficas feitas há trezentos anos para maior tormento dos que hoje as deletreiam. Quer isto dizer que muito pouco te poderei contar do que vai por aqui. Ando nos séculos XVII e XVIII. Poderia dar-te notícias de d. Gaspar de Munine Leon Garabito Tello y Espinosa, ou dos marqueses de Grimaldi e Floriblanca; mas não sei por onde anda Pires Ferreira, ou o que é feito de Glicério. É um encanto este exílio no tempo. O próprio barão, com a sua estranha e majestosa gentileza, recorda-me uma idade de ouro, muito antiga, ou acabada. Continuo a aproximar-me dele sempre tolhido, e contrafeito pelo mesmo culto respeitoso. Conversamos; discutimos; ele franqueia-me a máxima intimidade — e não há meio de poder eu considerá-lo sem as proporções anormais de homem superior à sua época. Felizmente ele não saberá nunca este juízo, que não é somente meu — senão que se vai generalizando extraordinariamente. De fato, é o caso virgem de um grande homem justamente apreciado pelos contemporâneos. A sua influência moral, hoje, irradia triunfalmente pelo Brasil inteiro. Os efeitos da conferência de Haia — onde Rui Barbosa teve o bom senso de reproduzir-lhe o pensar — consagraram-lhe definitivamente o prestígio. E este fato reconcilia-me com a nossa gente, demonstrando sobretudo a persistência de uma veneração antiga e já agora de todo sobranceira à volubilidade de uma opinião pública tão instável, como a nossa.
Não sei se já aí chegaram notícias da Reforma Orthográphica... (Aí deixo, nestes maiúsculos e nestes h h, o meu espanto e a minha intransigência etimológica!) Realmente, depois de tantos anos de alarmante silêncio, a Academia fez uma coisa assombrosa: trabalhou! Trabalhou deveras durante umas três dúzias de quintas-feiras agitadas — e ao cabo expeliu a sua obra estranhamente mutilada, e penso que abortícia. Há ali coisas inviáveis: a exclusão sistemática do y, tão expressivo na sua forma de âncora a ligar-nos com a civilização antiga e a eliminação completa do k, do hierático k (kapa como dizemos cabalisticamente na Álgebra)...
Como poderei eu, rude engenheiro, entender o quilômetro sem o empertigado k, com as suas duas pernas de infatigável caminhante, a dominar distâncias? Quilômetro, recorda-me kilometro singularmente esmagado ou reduzido; alguma coisa como um relíssimo decímetro, ou grosseira polegada. Mas decretou a enormidade; e terei, doravante, de submeter-me aos ditames dos mestres.
Mas a discussão foi vantajosa. A importância da Academia cresceu. As suas resoluções estenderam-se ao país inteiro — da rua do Ouvidor à Amazônia, da porta do Garnier ao último seringal do Acre.
A próxima eleição, a quem concorrem Jaceguai, João do Rio, Virgílio Várzea, anuncia-se renhida... e o achatado palacete do cais da Lapa fez-se definitivamente a kaaba (caba, deveria escrever-se pela nova ortografia!!) de todos os neophitos, ou neófitos, literários.
O Rio continua melhorando, aformoseando-se. A concorrência do estrangeiros, extraordinária. Os bondes e automóveis apinham-se do rubros saxões espantadíssimos e deslumbrados. Ressoam, nestes ares, ohs! em todas as línguas. Até em castelhano... Há dias vinham no inaturável bonde da Gávea nada menos de seis argentinos (seis argentinos, es una legión!), e quando voltamos à rua Voluntários, penetrando na Avenida Beira-Mar, o mais trêfego deles, precisamente o que me vinha a envenenar a bílis patriótica com uns instantes mira! mira! todas as vezes que deparava uma negra de trunfa escandalosa, — precisamente este gringo irrequieto não se pode conter: "Pero és hermosa, caramba!!" — rugiu e abalou do bonde, acompanhado dos companheiros eletrizados. Foi um encanto. Quero hoje um bem extraordinário ao anônimo gringo, que nem sei mais por onde anda, mas que é, com certeza, um artista inteligente e entusiasta.
Assim nos rodeiam, cada vez mais velhas, as nossas opulências naturais. Pena é o que na ordem moral não se notem idênticos primores. Mas não enveredarei por aí. Seria imperdoável o atirar-te tão longe os respingos amargos do meu pessimismo e desta melancolia irremediável. Além disto, há na tua carta profundos traços de tristeza, que não devo agravar. Ali se desenha nas entrelinhas a saudade da terra; e fora impiedade apontar o que esta tem de ruim.
Com esta carta mando um volume dos Sertões para a Biblioteca de Lima; e ulteriormente irão os livros de outros autores. Se não te causar muito trabalho, peço-te que me mandes o que aí houver acerca das modernas indagações históricas e geográficas do Peru; folhetos, ou livros.
Ando a pensar num livro, essencialmente sul-americano, e preciso estudar muito; e estou estudando muito. Mas a nossa pobreza de livros correspondentes é absoluta. Não preciso dizer-te que o teu nome de quando em vez ressalta nas nossas palestras: o Machado, o Verissimo, o Gastão e muitos outros, não te esquecem nunca, e harmonizam-se todos na mesma estima e nas mesmas saudades.
Aguardo mais amplas impressões sobre essa encantadora Lima de los Reyes, que imagino deslumbrante sob um céu eternamente límpido.
Até breve. Saudades, saudades e saudades do teu
Euclides da Cunha
S. — A breve escala de 4 horas, que aqui fez Guilermo Ferrero, na sua passagem para Buenos Aires, foi magnífica. O barão recebeu-o gentilmente. No Itamarati, antes e depois do jantar, que lhe foi oferecido, o extraordinário evocador da velha Roma lendária foi verdadeiramente cativante. É impressionadora a sua modéstia. O gênio tem ares tímidos e perturbados de mestre-escola da roça. E a sua Senhora é a mulher mais feia e mais encantadora que ainda viram estes meus olhos selvagens.
Chegaram ai uns artigos, "Peru versus Bolívia", que publiquei no Jornal do Comércio? É uma das minhas quixotadas. Constituiu-me, por satisfazer à índole romântica, um cavaleiro andante da Bolívia, contra o Peru. Por quê? Talvez porque a Bolívia... é mulher. De qualquer modo, manda-me dizer a tua impressão sobre o lance.