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Euclides da Cunha 1866 - 1909

''Venci por mim só, sem reclames, sem patronos, sem a rua do Ouvidor e sem rodas. Não invejo, porém,

os que se vão buscando mar em fora, de outras terras, a esplêndida visão...

Fazem-me mal as multidões ruidosas, e eu procuro, nesta hora,

cidades que se ocultam majestosas na tristeza solene do sertão." - Euclides da Cunha (1866 - 1909)

À memória de Euclides (José Marcio Castro Alves)


Meu digno amO. dr. Oliveira Lima,

*

Rio, 5 de maio de 1909
Meu digno amO. dr. Oliveira Lima,
O motivo essencial da falta de minhas cartas é este: Andei perdido, dentro da Caverna de Platão... Conhece com certeza a alegoria daquele máximo sonhador — de sorte que bem pode avaliar os riscos que passei. Volto à claridade embora ainda sinta a repercussão formidável das rixas intermináveis dos filósofos e os últimos ecos irritantes da algazarra das Teorias. Tudo isto quer dizer que me preparei para o concurso de Lógica. Mas surge um contratempo: a mesa examinadora (oficial) demitiu-se há um mês, e até hoje não foi possível organizar-se outra! De sorte que o problema se complicou singularmente. Ontem: serei feliz no concurso? Hoje:... e haverá concurso?
Nesta situação de espírito, não há alinhar-se idéias — para uma conversa calma com um bom amigo ausente. Escrevo-lhe apenas para que o sr. e d. Flora não nos incluam entre os ingratos.
Uma notícia a correr: foram no dia 12 eleitos o velho Lafayette e Vicente de Carvalho e embora a do 1º seja eleição de uma vaga, o velho lutador merecia bem essa homenagem de seus patrícios.
Muitas e respeitosas saudações a d. Flora, e receba um abraço do
Euclides da Cunha
P. S. — Não preciso dizer-lhe que transmiti logo ao Calmon o seu recado sobre a Flora Brasiliensis — há dias ele afirmou que já tinha satisfeito o seu pedido. Muito agradecido pela sua lembrança a propósito das terras do alto Paraná. Logo que me desembarace do Kant, do Comte, do Spencer, do Espinosa (o mais maravilhoso dos malucos) e não sei mais quantos sujeitos que vieram a este mundo apenas para tortura e desespero do espírito humano — logo que me veja livre desses felizes medalhões — irei dedicar-me de corpo e alma à tarefa.
Mas ao falar nos sujeitos precitados, não tenho meios de conter uma expansão de sinceridade: que desapontamento, lendo-os detidamente! Até então eu rodeava-os de uma veneração religiosa. De perto, vi-lhes a inferioridade. Kant, sobretudo, assombra-me, não já pela incoerência (porque é o exemplo mais escandaloso de um filósofo a destruir o seu próprio sistema) senão pelos exageros apriorísticos que o reduzem. A minha opinião de bugre é esta: o famoso solitário de Konigsberg, diante do qual ainda hoje se ajoelha a metade da Europa pensante, é apenas um Aristóteles estragado. Comte (que eu só conhecia e admirava através da matemática) revelou-se-me, no agitar idéias preconcebidas e prenoções, e princípios, um ideólogo, capaz de emparceirar-se ao mais vesânico dos escolásticos, sem distinção de nuances, em toda a linha agitada que vai de Roscelin a S. Tomás de Aquino. E quanto a Espinosa, supreende-me que durante tanto tempo a humanidade tomasse ao sério um sujeito que arranjou artes de ser doido com regra e método, pondo a alucinação em silogismos! Mas faço ponto. Não pararia mais se desse curso à onda [dei rancor que me abala diante desses nomes outrora tão queridos. Felizmente aí estão George Dumas, Durkheim, Poincaré, e na Áustria, o lúcido e genial Ernesto Mach — almas novas e claras, que nos reconciliam com a filosofia. Adeus outra vez; e outra vez um abraço do
Euclides
Em tempo — Recebi o seu recado, dado pelo Primitivo Moacir, e já escrevi ao Alves e ao Laemmert — para que enviem os livros desejados.
Saiu ontem — simultaneamente — no Jornal e no Estado o seu notável artigo sobre Machado de Assis. Ainda estou num terço da leitura, mas já ajuizei dele o bastante para dar-lhe os meus parabéns pela precisão e lucidez com que considerou o inolvidável mestre.