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Euclides da Cunha 1866 - 1909

''Venci por mim só, sem reclames, sem patronos, sem a rua do Ouvidor e sem rodas. Não invejo, porém,

os que se vão buscando mar em fora, de outras terras, a esplêndida visão...

Fazem-me mal as multidões ruidosas, e eu procuro, nesta hora,

cidades que se ocultam majestosas na tristeza solene do sertão." - Euclides da Cunha (1866 - 1909)

À memória de Euclides (José Marcio Castro Alves)


Rio, 22 de abril de 1904

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Rio, 22 de abril de 1904
Coelho Neto
Tens razão. Li a tua carta, e para logo, rompendo com um propósito que me parecia inflexível, procurei o Lauro Müller e pedi um emprego. Aquele velho companheiro, com enorme surpresa minha, — tão destemperados andam os homens e os tempos! — recebeu-me admiravelmente. Não era o ministro, era o antigo companheiro de ideal, o sócio daqueles estupendos sonhos de mocidade (ó República!...) que não sei mais onde existem. Mas antepõe-se um obstáculo grave: a legião inumerável de engenheiros desempregados, que entope as escadas das secretarias. Não imaginas o que eu vi... Vê se concebes, de momento, com o melhor da sua fantasia, o quadro de uma espécie de Encilhamento da Miséria. Há em cada caracol das escadas que levam aos gabinetes dos ministros urna espiral de Dante. Considera agora isto: eu entrei por uma delas; ninguém me conhecia; esquecera-me a preliminar de um cartão, de um empenho; de sorte que, a breve trecho, no apertão dos candidatos afoitos, capazes de pagarem com dois anos de vida cada degrau da subida, me vi frechado de olhares rancorosos... Estaquei, arfando, espetado, em pleno peito, por um cotovelo rígido e duro, de concorrente indomável; não ouvi o trágico ranger de dentes; ouvi grunhidos. Quis voltar; impossível: não havia romper-se a falange que se unia, em baixo, inteiriça, ombros colados como os dos suíços medievais na hora da batalha. Tirei desesperadamente o lenço
e amaldiçoei-te, ó homem, que, a cem léguas de distância, com um movimento da pena e um bater do coração, me atiravas naquela ciscalhagem de almas, de músculos e de nervos! Mas naquele instante alvorou um rosto amigo e desconhecido e, logo após, sacudida por um gesto, que roçou um impertinente cavanhaque vizinho, como a asa de um pássaro num capão de mato, uma pergunta: — É o sr....? O cavanhaque contemplou-me curioso, um sujeito gordo e tressuante por sua vez recuou, e na face cheia espalmou-se-lhe um sorriso; um outro, também gordo (a que mais podem aspirar estes homens? Noto que na sua maioria os candidatos são repletos de carnes) fez o milagre de afastar-se um pouco... e num minuto, nem sei como isso foi, estava lá em cima. E lá em cima empolgou-me a vaidade, porque, em verdade, quem me levara até lá, com tanta felicidade, fora o Euclides da Cunha!
Estas tolices escandalosas só se dizem aos irmãos.
Em resumo, — volto amanhã para Guarujá, já repleto de esperanças; e conto que dentro de 2 ou 3 meses estarei restituído à engenharia. Tenho a boa vontade incondicional dos dois Lauros — Müller e Sodré, além de muitos outros. Mas como não poderei ficar inativo (repito: a minha demissão foi uma cartada no vácuo; preciso trabalhar já e já), aceitei o convite que me fez o Lage para escrever n' O Pais. Escreverei também n' O Estado. Mas tudo isto é provisório. — Conversaremos melhor depois.
Recomenda-me aos teus e aos bons amigos de Campinas.
Abraço-te
Euclides da Cunha