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Euclides da Cunha 1866 - 1909

''Venci por mim só, sem reclames, sem patronos, sem a rua do Ouvidor e sem rodas. Não invejo, porém,

os que se vão buscando mar em fora, de outras terras, a esplêndida visão...

Fazem-me mal as multidões ruidosas, e eu procuro, nesta hora,

cidades que se ocultam majestosas na tristeza solene do sertão." - Euclides da Cunha (1866 - 1909)

À memória de Euclides (José Marcio Castro Alves)


Lorena, 12 de março de 1903.

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Lorena, 12 de março de 1903
Dr. Araripe Júnior
Chego de viagem; fantástica viagem em que, rompendo pelos caminhos deste velho recanto de 5. Paulo, eu fui bater na Bahia e no século XVII... É que o trole me conduzia a Silveiras e a Areias, enquanto o meu companheiro de viagem, o infernal Gregório de Matos, "um diabo passado por crivo de fios aristofanescos trançados com luxúria por mãos de feiticeiras", suplantando o gordo empreiteiro que gaguejava ao lado não sei mais que estafantes conceitos sobre um orçamento — o estupendo Homero dos lundus, arrebatava-me num prodigioso salto mortal do espírito sobre dois séculos, para a grande matriz das nossas tradições. E lá segui com ele, embetesgado nas vielas da velha capital... Belo sonho! Um dia estranho de vilegiatura ideal... Por uma evocação, exagerada talvez, eu vi a vida tumultuária da Arcada original dos Capadócios, nos velhos tempos e em plena vernação dos seus atributos característicos. E foi num verdadeiro estonteamento — entre risos, rasgados de violas, dolências de modinhas, saracoteios de sambas, e, aqui, passando entre serpentinas e cadeirinhas adamascadas, ali acotovelando reinóis recém-chegados ou esbarrando num volver de esquina com o frívolo Rocha Pita, contemplando de relance o padre Damaso, evitando, adiante, o feroz "Braço de Prata", saudando mais longe o previdente Lancastre — que eu vi pela primeira vez o terrível trombeteiro de má morte, o vilanaz Aristófanes das mulatas.
Que ressurreição e que figura!
E quando o pobre velho me desapareceu, afinal, obscuramente, num engenho de Pernambuco, toda a sua ironia de fogo e as suas rimas cauterizantes e as suas risadas vingadoras extinguiram-se também, de chofre.
É uma vida a que se assiste entre risos e comenta-se com austeridade. Porque o que ressalta, sobrepujando toda a sua desenvoltura pagodista — é o eterno martírio dos predestinados.
Mais do que o homem, biologicamente falando, Gregório de Matos foi um admirável órgão social quase passivo, feito uma alavanca, cuja força eram as próprias forças coletivas: uma máquina simples em que se corporizaram muitas tendências da raça nova que surgia. Foi "herói" na alta significação dada à palavra pelo dramático Carlyle: prefigurou, fundindo-se na sua individualidade isolada, muitos aspectos de um povo.
E passou pela vida obedecendo à fatalidade mecânica de uma resultante intorcível: incorrigível, rebelde sempre à visão estreita dos que pensavam morigerá-la, como se houvesse preconceitos ou regras para estes avant-coureurs das nacionalidades, títeres privilegiados, arrebatados pelas leis desconhecidas da história. Foi um grande sacrificado o desenvolto folgazão! E maior que os seus êmulos, de Juvenal a Bocage, a sua sátira, em que pese ao tom ferocíssimo e maligno, pertence-lhe menos do que às rebeldias nascentes e relaxamentos inevitáveis de uma sociedade em que se chocavam os vícios de um povo velho, agravados pela "bebedeira tropical" e os instintos inferiores de duas raças bárbaras.
Desta alquimia horrorosa, tendo como reagentes o deslumbramento solar, a canícula mordente e a terra fecunda, só podia surgir naquela retorta da Bahia desmedida aquele precipitado.
Foi tão natural e espontâneo que ainda não se extinguiu. Difundiu-se em dois séculos, e aí está, impressionante, nesta adorável capadoçagem nacional que atenua em boa hora a nossa melancolia de semibárbaros...
Mas noto a tempo o desgarrão que me desorienta, escrevendo, rápidas, estas linhas, tomando-lhe o tempo e expondo aí, desalinhadas e em tiagrante, a impressão ou antes uma das impressões que me deixou seu belo livro. Vou relê-lo e talvez melhor o compreenda.
Recebi o seu cartão. Não devia surpreendê-lo o efeito do artigo. A sua ação intelectual, afirmo-o, e confirmam-me algumas cartas que a respeito recebi, — é muito maior do que julga.
Pretendia falar sobre o notável mimetismo psíquico da obnubilação exposto no livro com tanta clareza. Mas onde iriam parar os meus orçamentos e os meus projetos e os meus empreiteiros, se eu firmasse a pena nesta discussão?
Até breve, e creia sempre na alta consideração e estima do patrício e admirador
Euclides da Cunha