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Euclides da Cunha 1866 - 1909

''Venci por mim só, sem reclames, sem patronos, sem a rua do Ouvidor e sem rodas. Não invejo, porém,

os que se vão buscando mar em fora, de outras terras, a esplêndida visão...

Fazem-me mal as multidões ruidosas, e eu procuro, nesta hora,

cidades que se ocultam majestosas na tristeza solene do sertão." - Euclides da Cunha (1866 - 1909)

À memória de Euclides (José Marcio Castro Alves)


Manaus, 10 de março de 1905.

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[Cartão-postal]
Manaus, 10 de março de 1905
Coelho Neto
Quando fui hoje ao correio para assistir à abertura da mala do "Gonçalves Dias" levava a preocupação absorvente de encontrar cartas de casa porque vai para dois meses que não as recebo. Nem uma! Mas (temperamento singular o meu, feito para todas as dores e para todas as alegrias) recebi toda garrida, embora vestida de preto, a tua carta gentilíssima. E foi como uma janela que se abrisse de repente no quarto de um doente... Obrigado, meu esplêndido companheiro de armas! Jamais avaliarás os resultados da tua verve tumultuada neste meu tédio lúgubre de Manaus. Manaus — ha uma onomatopéia complicada e sinistra nesta palavra — feita do soar melancólico dos cabarés e da tristeza invencível do Bárbaro. Não te direi os dias que aqui passo, a aguardar o meu deserto, o meu deserto bravio e salvador onde pretendo entrar com os arremessos britânicos de Livingstone e a desesperança italiana de um Lara, em busca de um capítulo novo no romance mal-arranjado desta minha vida. E eu
devia estar dominando as cabeceiras do rio suntuoso, exausto nos primeiros boleios dos Andes ondulados. Mas, que queres? Manietaram-nos aqui as malhas da nossa administração indecifrável e só a 19 ou 20 deste receberemos as instruções que nos facultarão a partida. Imagina, se puderes, as minhas impaciências. Esta Manaus rasgada em avenidas, largas e longas, pelas audácias do Pensador, faz-me o efeito de um quartinho estreito. Vivo sem luz, meio apagado e num estonteamento. Nada te direi da terra e da gente. Depois, aí, e num livro: Um Paraíso Perdido, onde procurarei vingar a Hibe maravilhosa de todas as brutalidades das gentes adoidadas que a maculam desde o século XVIII. Que tarefa e que ideal! Decididamente nasci para Jeremias destes tempos. Faltam-me apenas umas longas barbas brancas, emaranhadas e trágicas. Vamos a outro assunto. Chegou tarde o teu pedido sobre a próxima eleição da Academia. Já o Veríssimo me comunicara a renúncia do Vicente, indicando-me o Sousa Bandeira. Mandei-lhe o meu voto pelo vapor passado. Entretanto da tua carta à dele modearam apenas 30 e poucas horas que foram do avançamento do "S. Salvador" sobre o 'Gonçalves Dias". Caprichos da fortuna.
Não te esqueças de ir com tua Senhora visitar as minhas quatro enormes saudades na minha fazendinha de Laranjeiras. Escreve-me sempre e sempre. As tuas cartas serão recebidas mesmo no Alto Purus.
l2º filho! Não sei se devo dar-te parabéns por esse transbordamento de vida. Neste tempo e nesta terra as criancinhas deviam nascer de cabelos brancos e um coração murcho, meu velho Coelho Neto. De mim penso que uns restos de mocidade nacional estão nas almas de meia dúzia de sexagenários dos bons tempos de outrora. Entre esses desfibrados e jovens imbecis tenho às vezes, vontade de perguntar a um Andrade Figueira, a um Lafayette e a um Ouro Preto se já fizeram vinte anos. Ma façamos ponto, alto! neste rolar pelo declive do meu pessimismo abominável.
Adeus. Até a volta, porque, — infalivelmente — ainda te apertará em um abraço o teu
Euclides da Cunha